"As pessoas às vezes mudam de endereço, meu jovem, sem informar a quem está procurando por elas. Talvez não queiram ser achadas. Tem gente que tenta fazer de suas vidas um mistério."
Um filme sobre a decadência e como tentamos sobreviver a ela. Assim, pode ser descrito O Desespero de Veronika Voss, o penúltimo filme de Rainer Werner Fassbinder.
A história da outrora grande estrela Veronika Voss (Rosel Zech) que para satisfazer o seu vício por morfina, dar tudo o que tem a uma neurocirurgiã (Annie-Marie Düringer) em troca de doses da substância.
Fassbinder, se baseou na história real de Sybille Schmitz, uma atriz alemã que alcançou o sucesso ainda muito jovem. Nos anos 30, quando os nazistas tomam o controle da Alemanha muitas grandes atrizes migraram para a América. Mas, Sybille tinha uma "aparência alien" demais para Hollywood, e na Alemanha sua aparência era "muito judia" para os filmes do cinema nazista. Recebendo cada vez menos papéis, e nenhuma como protagonista, Sybille se entregou às drogas e ao álcool, afundando cada vez mais em seu desespero.
"Os velhos sabem todos os segredos que o jovens ainda irão descobrir".
O roteiro escrito pelo próprio Fassbinder, vai adicionando história paralelas que se conectam com a trama principal. Robert Krohn (Hilmar Thate) é um jornalista esportivo que oferece a Veronika carona em seu guarda-chuva numa noite chuvosa. O breve encontro entre ambos é o bastante para que um se entregue quase que hipnoticamente ao outro. Veronika se agarra a Robert pelo desespero de quem querendo se salvar agarra ao que aparece, Robert por sua vez é tragado pela curiosidade e pelo mistério que aquela mulher carrega consigo.
O universo em que as personagens vivem parece oprimi-los por suas escolhas, as quais parecem ter alternativas senão submeter-se a estas. É o caso de Henriette (Cornelia "Cony" Froebess), a noiva de Robert, que se dispõe a fazer de tudo, mesmo que isto ajude o seu noivo a se aproximar da sua rival.
"Quando uma atriz interpreta uma mulher, que quer conquistar um homem, ela tenta ser todas as mulheres do mundo em uma só."
A rigorosa fotografia por Xaver Schwarzenberger, é nos apresentada logo nos créditos iniciais, um contraposição entre a luz e a sombra, evidente na escolha de uma fotografia em preto e branco para um filme feito na década de 80. Esta contraposição é muito evidente no filme envolvendo as personagens num misto de revelação e mistério, o que se ver e o que elas escondem.
Após a abertura em que Veronika ver decepcionada sua participação no último filme, somos levadas a uma sequência que mostra a cena que ela viu no cinema sendo filmada. Schwarzenberger utiliza uma fotografia excêntrica com a luz formando estrelas na tela que atrapalha a visão do espectador, como se a nos dizer que o brilho de uma estrela às vezes impede de ver o que se esconde por trás dela.
A câmera em O Desespero de Veronika Voss, se mistura com o cenário, transformando quem assiste num observador à espreita de tudo o que acontece. É um abuso do mise-en-scène com enquadramentos atrás de objetos, paredes, janelas, vidros, se aproveitando de espelhos e enquadramentos inclinados em escadas.
O universo desta obra é monocromático, no figurino predomina o preto ou o branco, e a combinação de ambos em vestes listradas. Assim, como os cenários, ora numa forte luz, ora na escuridão. O consultório da Dra. Kratz onde Veronika se refugia é de um branco pertubador, como se o excesso de clareza nos machucasse.
Para além, da excelente direção de Fassbinder, o elenco está num nível estupendo. Rosel Zech, no papel de Veronika realiza um trabalho espetacular. Ao longo do filme, nunca sabemos o momento em que Veronika está atuando ou quando está sendo real, ou se ela é real o tempo todo, ou o tempo todo estivesse apenas atuando. Além, de Hilmar, Annie-Marie e Cony muito bem em seus papéis, o filme traz o simpático casal de idosos, Alter Mann (Rudolf Platte) e Alte Frau (Johana Hofer), suas histórias que em parte se confundem a da protagonista, servem para que Fassbinder, possa poeticamente ir revelando os segredos por trás de sua obra. Apesar de curtas, as aparições do casal servem para introduzir o que está por vim.
O roteiro de Fassbinder vai se revelando lentamente. Apenas aos 60 minutos fica bastante nítido o que se passa naquele ambiente e como cada personagem contribui para criá-lo. Sua edição pode parecer extravagante e pouco usual, mas, ao avançar da história você passa a compreender o seu encaixe perfeito com a história, nos transportando através do tempo, do espaço e do tom psicológico da cena.
A música por sua vez brota em pontos marcados da trama, mas, num plano mais geral que íntimo da personagem em cena. De repente, você ver surgir uma música alegre numa sequência que parece caminhar para a decepção. Peer Raben, o responsável pela música, a usa para antecipar o suspense, ou para marcar a tensão pela qual parecem está passando as personagens.
"Quando você ler um livro até o fim, é o momento de fechá-lo"
O Desespero de Veronika Voss leva cada personagem para aquele caminho ao qual se esforçaram para alcançar. Nenhuma dedicação é desperdiçada, nenhuma desistência é recompensa. Ao fim, o caminho que cada um trilhou para si e não fraquejou em nenhum momento para conquistar é alcançado.
A frieza da história é cortante. em um momento do filme, Veronika se dirige a Dra. Kratz: "- Você tem me dado uma grande felicidade", ao que secamente ela responde: "- Eu a vendi para você". A morfina para Veronika parecia uma forma de trazer para a sua existência real o ópio que a ficção lhe trazia. Ao fim a confusão entre a ficção e a realidade parece ter sido a tônica de sua vida.
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