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quinta-feira, 10 de julho de 2014

Leia o excelente Conto que inspirou A Vida Secreta de Walter Mitty

O conto escrito por James Thurber em 1939 sobre um homem sonhador acabou tendo uma grande repercussão nos EUA, entrando inclusive para o vocabulário da língua inglesa. Leia este conto a seguir: 


O filme A Vida Secreta de Walter Mitty se inspirou neste conto, que passou a designar em língua inglesa pessoas sonhadoras. Você pode ler a resenha do filme em nosso blog (aqui). 

O conto traduzido foi tirado do site altamenteacido.com.br 
E a versão original em inglês http://bnrg.eecs.berkeley.edu/~randy/mitty.html 

Leia agora:

O que nem Thurber esperava, era pelo tamanho do sucesso do seu personagem. Tanto que Walter não apenas ganhou um livro inteirinho por conta, como também lugar no imaginário norte americano, a ponto de parar na terminologia militar (quando um sujeito quer ser soldado, mas não leva jeito nenhum pra coisa, eles o chamam de Walter) e até no site oficial do Snoopy (que descreve o cãozinho como um Beagle com complexo de Walter Mitty).

Nós, pobres colonizados, só poderemos conferir por aqui a versão Stiller da obra para os cinemas no final de dezembro. Porém, se quiser saber como foi a primeira aparição para o mundo deste universo Mittyco, aqui vai o conto original traduzido na íntegra.

Desperte o fantástico mundo de Bob que existe em você.

A vida secreta de Walter Mitty
de James Thurber

- Vamos atravessar! – a voz do Comandante era como o quebrar de uma fina camada de gelo. Estava de uniforme de gala e tinha o boné branco, cheio de galões, caído displicentemente sobre um dos olhos frios e cinzentos.
- Não vamos conseguir, Senhor Comandante. Vem aí um furacão, se quer saber a minha opinião.
- Não quero saber a sua opinião, Tenente Berg – disse o Comandante – Potência máxima! Aumentem a velocidade de rotação até os 8.500! Vamos atravessar!
Intensificou-se o bater dos cilindros: tá-poquetá-poquetá-poquetá-poquetá-poquetá! O Comandante ficou por um momento a observar o gelo que se formava na janela do piloto. Em seguida girou uma fileira de botões complicados.
- Liguem o motor auxiliar número 8! – gritou.
- Liguem o motor auxiliar número 8! – repetiu o Tenente Berg.
- Potência total na torre número 3! – gritou o Comandante.
- Potência total na torre número 3!
A tripulação, ocupada nas várias tarefas dentro do gigantesco hidroavião da Marinha, propulsionado por oito motores, entreolhava-se e sorria.
- O Velho vai fazer-nos atravessar – diziam entre si – O Velho não tem medo do Inferno…

- Não vá tão depressa! Você está correndo demais! – disse a Sra. Mitty – Por que você dirige tão rápido?

- Hã? – disse Walter Mitty. Espantado, olhou para a mulher, sentada no banco ao seu lado. Pareceu-lhe muito pouco familiar, como uma desconhecida que no meio da multidão lhe tivesse gritado uma coisa qualquer.
- Você estava a mais de oitenta por hora – disse – Você sabe que não gosto de andar a mais de sessenta. Você estava a mais de oitenta.
Walter Mitty continuou a conduzir em silêncio até Waterbury, enquanto o rugido do SN202, que enfrentava a pior tempestade em vinte anos de Aviação Naval, desaparecia nas remotas e íntimas rotas aéreas do seu pensamento.
- Você está ficando tenso outra vez – disse a Sra. Mitty – Você está num daqueles dias. Devia deixar que o Dr. Renshaw o examinasse.

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Walter Mitty parou o carro em frente ao prédio onde a mulher ia ao cabeleireiro.
- Lembre-se de comprar as galochas enquanto estou no cabeleireiro – disse ela.
- Não preciso de galochas – disse Mitty.
Ela devolveu o espelho à bolsa.
- Já discutimos isto – disse, saindo do carro – Você não é mais uma criança.
Ele fez o motor acelerar um pouco.

- Por que você não coloca as luvas? Você perdeu as luvas? Walter Mitty levou a mão ao bolso e tirou as luvas. Colocou-as, mas depois que a mulher virou-se e entrou no prédio e que ele chegou ao sinal, começou a tirá-las novamente.
- Vamos com esse carro! – repreendeu o policial, quando o sinal abriu. Mitty tirou apressadamente as luvas e avançou num solavanco. Dirigiu sem destino pelas ruas durante algum tempo e passou em frente ao hospital, a caminho do estacionamento.
- …É o banqueiro milionário, Wellington McMillan – disse a bonita enfermeira.
- Sim? – respondeu Walter Mitty, tirando lentamente as luvas – Quem está tomando conta do caso?
- O Dr. Renshaw e o Dr. Benbow, mas há também dois especialistas, o Dr. Remington de Nova Iorque e o Dr. Pritchard-Mitford de Londres. Veio de avião.
Abriu-se uma porta em um corredor comprido e frio e apareceu o Dr. Renshaw. Parecia aturdido e extenuado.
- Olá, Mitty – disse – Estamos passando um mau bocado com McMillan, o banqueiro milionário que é amigo íntimo de Roosevelt. Obstrução terciária de canal. Gostaria que você o olhasse.
- Com muito prazer – disse Mitty.

Na sala de operações houve apresentações sussurradas.
- Dr. Remington, Dr. Mitty. Dr. Pritchardd-Mitford, Dr. Mitty.
- Li o seu livro sobre estreptotricose – disse Pritchard-Mitford, apertando-lhe a mão – Um trabalho brilhante.
- Obrigado – respondeu Walter Mitty.
- Não sabia que você estava nos Estados Unidos, Mitty – resmungou Remington – Chamaram-me e ao Mitford para ensinar o padre nosso ao vigário!
- Você é muito amável – disse Mitty.

Uma máquina enorme, complicada, ligada à mesa operatória, com muitos tubos e fios, começou nesse momento a fazer poquetá-poquetá-poquetá. – O novo aparelho de anestesia está falhando! – gritou um estagiário – Não há ninguém no país que saiba consertá-lo!
- Fique quieto! – disse Mitty numa voz baixa e controlada.
Correu para a máquina, que agora fazia poquetá-poquetá-pip-poquetá-pip. Pôs-se a dedilhar delicadamente uma fileira de botões cintilantes.
- Dêem-me uma caneta-tinteiro! – disse, áspero.
Alguém lhe passou uma caneta-tinteiro. Ele puxou um pistão avariado da máquina e introduziu a caneta no seu lugar.
- Isto vai agüentar uns dez minutos – disse – Continuem a operação.
Uma enfermeira veio correndo e sussurrou uma coisa qualquer a Renshaw, e Mitty viu o médico empalidecer.
- Instalou-se a coriopse! – exclamou Rennshaw, nervoso – E se você tomasse o meu lugar, Mitty?
Mitty olhou para ele, para a figura amedrontada de Benbow, que suava em bicas, e para a fisionomia carregada e hesitante dos dois grandes especialistas.- Se você prefere – disse.
Vestiram-lhe uma bata branca; ajustou a máscara e colocou umas luvas finas; as enfermeiras passavam-lhe reluzentes instrumentos cirúrgicos…

- Para trás, chefe! Cuidado com esse Buick! – Walter Mitty pisou fundo no freio – Você está na contra-mão! – disse o empregado do estacionamento, olhando fixamente para Mitty.
- Ih! é! – murmurou Mitty.
Com cautela, começou a dar marcha-à-ré na pista que dizia “Saída”.
- Deixe-o aí! – disse o empregado – Eu o dirijo.
Mitty saiu do carro.
- Olhe, é melhor deixar a chave.
- Ah! é! – disse Mitty, passando-lhe a chave da ignição.
O empregado saltou para dentro do carro, recuou com uma perícia insolente, e o arrumou no lugar.

São tão terrivelmente convencidos, pensou Walter Mitty, caminhando pelas ruas do centro da cidade; pensam que sabem tudo. Uma vez tentara tirar as correntes das rodas do carro, nos arredores de New Milford, e as enrolou todas nos eixos. Teve que vir um homem num reboque para desenrolá-las. Um jovem mecânico que não parava de rir. Desde então a Sra. Mitty sempre o fazia levar o carro à oficina para tirarem as correntes. Da próxima vez, pensou, vou com o braço na tipóia; eles assim já não vão sorrir. Vou com o braço na tipóia e eles hão de ver que eu não poderia de modo nenhum tirar as correntes sozinho. Enterrou o pé na lama do passeio. – Galochas – disse para consigo mesmo, e pôs-se à procura de uma sapataria.

Quando voltou para a rua, com as galochas numa caixa debaixo do braço, Walter Mitty começou a pensar qual seria a outra coisa que a mulher lhe tinha dito para trazer. Ela falara duas vezes, antes de saírem de casa para Waterbury. De certa forma ele detestava estas viagens semanais à cidade – sempre fazia alguma coisa errada. Lenços de papel – pensou – pomada, lâminas de barbear? Não. Pasta de dentes, escova de dentes, bicarbonato, esponja-de-aço, desiderato, estardalhaço? Desistiu. Mas ela ia lembrar-se. “Onde está o não-sei-o-quê”, perguntaria. “Não me diga que esqueceu do não-sei-o-quê”. Passou um rapaz a vender jornais e a gritar uma coisa qualquer sobre o julgamento de Waterbury.

- …Talvez isto lhe refresque a memória – O promotor agitou uma arma pesada diante da figura calma no banco das testemunhas – Já viu isto alguma vez?
Walter Mitty pegou a arma e a examinou com perícia.
- É a minha Webley-Vickers 50.80 – disse calmamente.
Um zum-zum de agitação percorreu o tribunal. O Juiz apelou à ordem.
- Imagino que o senhor seja um atirador de primeira com todo o tipo de armas de fogo – prosseguiu o promotor, num tom insinuante.
- Objeção! – gritou o advogado de Mitty – Demonstramos que o réu não pode ter disparado. Demonstramos que ele tinha o braço direito na tipóia, na noite de 14 de julho.
Walter Mitty levantou a mão por um momento e os advogados se calaram.
- Com todo o tipo de arma conhecido – disse, tranqüilo – eu poderia ter matado Gregory Fitzhurst a cem metros de distância com a minha mão esquerda.
Gerou-se o pandemônio na sala. Elevou-se sobre o tumulto um grito de mulher e de repente uma bela morena estava nos braços de Mitty. O promotor esbofeteou-a selvagemente. Sem se levantar da cadeira, Mitty deu ao homem o que ele merecia, na ponta do queixo.
- Cão desprezível!…

“Ração pra cachorro”, disse Walter Mitty. Estacou o passo e os prédios de Waterbury emergiram do tribunal nebuloso para novamente o rodearem. Uma mulher que passava sorriu.
- Ele disse “ração pra cachorro” – disse ao seu companheiro – Aquele homem disse “ração pra cachorro”, falando sozinho.
Walter Mitty apressou-se. Entrou numa loja de animais, não a primeira que encontrou mas uma segunda, menor, um pouco acima na mesma rua.
- Eu queria ração pra cachorro de raça, pequeno – disse ao empregado.
- Deseja alguma marca em particular?
O melhor atirador do mundo pensou por um momento.
- Na caixa está escrito: “Os cachorros ladram por ela” – disse Walter Mitty.

A mulher sairia do cabeleireiro em quinze minutos, pensou Mitty olhando para o relógio, se não tivesse problema para secar os cabelos; às vezes havia problema para secar os cabelos. Ela não gostava de chegar primeiro ao hotel; queria que ele estivesse ali à espera, como de costume. Ele encontrou uma poltrona de couro na entrada, de frente para uma janela, e colocou as galochas e a ração pra cachorro no chão. Pegou um velho número da revista Liberty e afundou-se na poltrona. “Pode a Alemanha Conquistar o Mundo pelo Ar?” Walter Mitty olhou para as fotografias de bombardeiros e de ruas destruídas.

- …O bombardeio deixou o jovem Raleigh muito nervoso, Capitão – disse o Sargento.
O Capitão Mitty levantou os olhos para ele, por entre os ralos cabelos despenteados.
- Metam-no na cama – disse, cansado – Com os outros. Vou voar sozinho.
- Não pode fazer isso, Capitão – disse, ansioso, o Sargento – São necessários dois homens para controlar esse bombardeiro e os inimigos estão fazendo do céu um inferno. O palco dos combates vai daqui até Saulier.
- Alguém tem que chegar àquele paiol – disse Mitty – Lá vou eu. Uma dose de conhaque?
Serviu uma dose para o Sargento e outra para si. A guerra trovejava e gemia à volta da trincheira e fustigava a porta. A madeira estalou e farpas atravessaram a sala.
- Foi por pouco – disse o Capitão Mitty, despreocupadamente.
- O fogo de artilharia aproxima-se – disse o Sargento.
- Só se vive uma vez, Sargento – disse Mitty, no seu sorriso leve e rápido – Não é?
Serviu mais uma dose de conhaque e a engoliu de um trago.
- Nunca vi ninguém agüentar o conhaque como o senhor – disse o Sargento – Com o devido respeito, Capitão.
O Capitão Mitty levantou-se e pôs no ombro a sua gigantesca Webley-Vickers automática.
- São 40 quilômetros de inferno – disse o Sargento.
Mitty acabou uma última dose de conhaque.
- No fundo – disse suavemente – o que é que não é um inferno?
Aumentavam os tiros de canhão; ouviu-se o rá-tá-tá das metralhadoras, e veio de algum lugar o ameaçador poquetá-poquetá-poquetá dos novos lança-chamas. Walter Mitty foi para a porta da trincheira cantarolando “Auprès de Ma Blonde”. Virou-se e acenou ao Sargento: “Até breve!”, disse…

Algo lhe bateu no ombro.
- Estou à sua procura pelo hotel inteiro – disse a Sra. Mitty – Por que você teve de se esconder nessa cadeira velha? Como é que queria que eu o encontrasse?
- O cerco aperta-se – disse Walter Mitty vagamente.
- O quê? – disse a Sra. Mitty – Você trouxe o não-sei-o-quê? A ração pra cachorro? O que é que está dentro dessa caixa?
- As galochas – disse Mitty.
- Você não podia tê-las calçado na loja?
- Estava pensando – disse Walter Mitty – Nunca lhe ocorreu que eu às vezes posso estar pensando?
Ela olhou para ele.
- Quando chegarmos em casa vou ver se você tem febre – disse.

Passaram pelas portas giratórias que rangiam um tanto zombeteiramente quando empurradas. Estavam a dois quarteirões do estacionamento. Ao chegarem à esquina da farmácia ela disse: “Espere aqui por mim. Esqueci-me de uma coisa. É só um instantinho”. Foi mais do que um instantinho. Walter Mitty acendeu um cigarro. Começou a cair uma chuva fina. Ele pôs-se a fumar encostado à parede da farmácia… Endireitou os ombros e juntou os calcanhares. “Para o inferno com esse lenço”, disse Walter Mitty com desdém. Deu uma última tragada e atirou o cigarro no chão. Depois, com aquele sorriso leve e rápido brincando nos lábios, encarou o pelotão de fuzilamento, impassível, orgulhoso e desdenhoso. Walter Mitty, o invencível, impenetrável até o fim.

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